Ouvia-se cá nas bandas da capital mineira, por muito tempo, que o mineiro não perde o trem. Mas não só na capital. Ouvia-se muito disso de outros mineiros, vindos de outras bandas pra cá, que o trem não era, jamais, perdido por eles. Não é de se espantar, então, que a capital cresceu tão depressa, ávida por abrigar os que não perderam a viagem e que aqui chegaram pra chamar de lar. Desembarcados na Praça da Estação, puderam respirar fundo, aliviados pela boa viagem, após um Pai Nosso em agradecimento à calmaria. Trem não é navio, não afunda. Não é avião, não cai. Mas é a jornada o que esfria a barriga. É a ansiedade da chegada o que assusta. Por isso o Pai Nosso.
O largo da Praça da Estação já diz muito com seu espaço aberto, de chão plano e firme. Firme como mostra o Monumento à Civilização Mineira: uma estátua, feita em granito pelas mãos de um mestre italiano, empunhando, em sua mão direita erguida ao alto, uma bandeira em sinal de conquista, do apreço à terra, do respeito às Minas Gerais.
Lá no fundo, bem longe mesmo, a Serra do Curral cerca a visão de quem chegou e pra lá olhou. “Uai, não era belo o horizonte? Cadê? Tá bom, pelo menos de lá pra cá tô protegido.” Protegido dos ventos mais frios do sul, verdade. Protegido também de não perder de vista o verde da natureza quando aperta a nostalgia da terra natal. E ainda fica o alívio de sempre conseguir olhar pra algum lugar mais alto que os mais altos arranha-céus e lembrar que têm muita coisa acima de nós. É o que pensam os religiosos, os meteorologistas e os astrônomos quando vislumbram a Serra do Curral.
– “O sô moço, bom dia. Onde eu consigo bater um rango dos bão por aqui?”
– “Logo ali, subindo a Amazonas, passando aquele monte de coqueiro ali, ó. Depois o senhor quebra pra direita quando chegar no Pirulito da Praça Sete, desce a Afonso Pena e quebra pra esquerda na Tupinambás.”
E lá no Café Palhares o rango é bom demais da conta e tem couve, arroz, ovo frito e linguiça. O nome de batismo é Kaol, ainda que o “K” deva ser trocado por um “C”, assim penso. Tem feijão também, não é dos tropeiros, mas leva farinha e vai junto no mesmo prato, no mesmo rango.
“Depois do rango o senhor volta de novo subindo a Afonso Pena. Passou o Pirulito, dá uma chegadinha ali no Café Nice, faz uma boca de pito com um cafezinho coado na hora, tece um dedo de prosa pra assuntar das moda do que tá acontecendo nessas banda e depois vê o que o senhor faz, se estiver sossegado, né?”
E é lá pros lado de cima, subindo a Afonso Pena, que o horizonte da cidade fica mais belo, o mais belo do mundo, se você perguntar pra qualquer belorizontino. É subindo a avenida que a muvuca e o frenesi do centrão dão espaço pra calmaria que todo bom mineiro adora. Não que nos outros lados da cidade o sossego não exista. Existe sim, tem muita coisa boa, mas é lá pra cima, no pé da montanha, que veio a egéria para o nome da capital.
Sobe toda a avenida, mas não sem antes comer meio pacote de pipoca no Parque Municipal e dar o resto pros peixes no laguinho lá de dentro. Tá calor, mas lá tem sombra de sobra, tem muita árvore grande pra deixar o ar mais fresco. Tem por lá uns lambe-lambe, pra bater um retrato e eternizar o momento. Respira fundo, estica as pernas e continua subindo a avenida.
Sobe tudo, passa a Praça da Bandeira onde acaba a Afonso Pena, que vira Agulhas Negras. Quem vai de carro desvia um tiquinho e vai lá pra rua do Amendoim. Não sei se é doideira, se é viagem, se é mentira ou se é E.T, mas a fofoca é que se você deixar o carro desengrenado e sem freio de mão puxado nessa rua, sem ninguém dentro do automóvel, ele sobe a rua sozinho. É aí que os astrônomos e meteorologistas vão parar de olhar pra cima e vão olhar pro lado, pro mineirinho rezador, e dizer com um pequeno espanto: “Uai!”
Mas é lá na Praça do Papa, ali pertinho, que a cidade ganha seu nome. Não é pela beleza da praça, que tem um nome de batismo que nem é “do Papa”, mas que mudou sua graça quando o João de Deus lá esteve pra ver, numa única contemplação, sem girar a cabeça, sem binóculos ou luneta, todo o Belo Horizonte. E viu como era bela a cidade, como era quase divino o pôr do sol. Viu a jovem cidade, uma das mais jovens do Brasil, arrancar-lhe suspiros, talvez um ensaio de pranto, fazendo um homem do Velho Mundo se ajoelhar diante do mundo novo. Fez-se um Em Nome do Pai em respeito à essa terra, mas também em sinal de admiração. Bendita seja essa cidade, por clérigos, devotos e ateus, praticantes ou não, pois rememorável é o cair da noite nesse cantão de meu Deus, onde cada uma daquelas pequenas luzes lá embaixo costumam chamar de lar.
E outro dia, lá no balaústre da rua Sapucaí, de frente para as costas da Estação Central de Metrô de Belo Horizonte, me peguei pensando que hoje quase não tem mais trem por aqui. E desses trem de passageiro, tem apenas um, que sai cedinho em direção ao Espirito Santo. E vão falar que aqui tem muito trem sim, porque nosso metrô não é metrô e sim trem urbano. Quem é mineiro sabe que o trem não é bem assim.
E nesse mesmo dia, na Sapucaí, eu vi alguns metrôs passando ali em baixo e pensei: podia ser um, dois, dez trem. Gente descendo e subindo, chegando e saindo, mas não é trem. E o que importa? No fritar dos ovos, na hora que o pão de queijo fica pronto, enfim, no fim das contas, é só mais um monte de chegada e partida. Minas é feita disso. É a memória que importa, sobre o afeto que fica.
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